Foi com grande alarde
que o público recebeu O Segredo do Casmurro, livro contendo a
monografia de conclusão do curso de letras de Augusto Cavalcante. Defendida
alguns meses antes de sua publicação, foi um dos professores da banca que
convenceu Augusto de que sua ideia não poderia ficar restrita ao meio
acadêmico. Era perigosa, inovadora e, principalmente, propunha uma nova rota de
investigação e conjectura para aquele que é considerado um dos maiores
mistérios da literatura mundial. Procure em qualquer biblioteca de faculdade;
as monografias, dissertações e teses que se ocupam em desvendar o enigma da
suposta traição de Capitu são infindáveis, mas todas se limitam a duas
respostas: em talvez metade delas, Capitu é infiel, e na outra metade, as
desconfianças de Bento não condizem com a realidade. Provas são apresentadas tanto
pelos defensores de uma teoria quanto de outra, mas a narrativa foi construída
com tamanha maestria por Machado de Assis que qualquer resposta definitiva não
consegue ser de impossível contestação. E a ideia de Augusto também era
passível de toda e qualquer dúvida, e seu autor sabia disso. Ele não pretendia,
de forma alguma, afirmar que o que ele dizia era a verdade, porque talvez
sequer exista uma verdade. Ele apenas desejava expor um novo caminho, que lhe
era tão claro, que o espantava o fato de que ninguém houvesse pensado nele
antes. Augusto não afirmava que Capitu traiu nem que não o fez; a consumação da
traição por parte dela não era o seu foco. O que ele realmente propunha era
que, de culpada, Capitu deveria passar, se não tão somente, ao menos também, a
vítima. O grande traidor da história era Bento. De igual às outras teorias,
apenas o fato de Escobar ser o personagem com quem a traição ocorreu.
Apresentando várias
passagens, como as que descrevem Escobar tão ou mais longamente que Capitu, de
maneira tão romântica quanto; aquelas onde o contato físico com o amigo era tão
íntimo quanto com a amiga; da comparação do mar entre a casa dele e do amigo já
crescidos com o muro da infância entre ele e Capitu; do modo de referir-se
semelhante à Capitu e Escobar, amigo e amiga; outras onde a cenas com Escobar
seguiam-se, obrigatoriamente, narrativas que provassem de algum modo sua
heterossexualidade; Augusto resumia Dom Casmurro como uma projeção: Bento joga
sua culpa pela traição com Escobar em Capitu, como se ela houvesse cometido o
que, na verdade, fora vivenciado por ele. É o próprio Bento quem afirma que
usaria suas lembranças conforme lhe conviessem para construir ou reconstruir a
si mesmo. Para Augusto, não só as lembranças eram usadas conforme convinham,
como também estas eram recriadas, em auxílio da formação de uma grande farsa.
Do alto de sua inteligência, Machado de Assis encontrara um modo sutil para
contar a história de um amor entre iguais, em meio a uma sociedade conservadora.
Em resumo, era essa a interpretação do romance em que consistia o
livro O segredo do Casmurro, e era essa a tese que tanto alvoroço causou. Os
literatos conservadores a viram como uma afronta a obra do Bruxo do Cosme
Velho; alguns psicanalistas a louvavam como uma sensata análise da aplicação
dos chamados mecanismos de defesa, enquanto outros diziam que um desconhecedor
da teoria de Freud não deveria se aventurar em falar em seus termos;
professores de literatura e português dividiam-se na opinião, com uma parte
taxando Augusto como louco e outra o congratulando por sua ideia, divisão
também presente no grande público. Os mais felizes, no entanto, com a
possibilidade de um amor entre dois homens ser o pilar de um dos mais aclamados
romances de todos os tempos eram os homossexuais. Sua vitória com o
reconhecimento da união civil estável entre pessoas do mesmo sexo era muito
recente e ainda muito discutida, e toda e qualquer ajuda para sua causa era bem
vinda.
Quando
perguntado se a bandeira da homossexualidade era a que defendia com sua teoria,
Augusto afirmava que não, mas que não via problemas na sua utilização por parte
da comunidade gay. O fato é que, mesmo que assim não desejasse, a bandeira com
as cores do arco-íris já havia sido fincada em suas mãos. Assim como vinha se
fazendo presente a cada momento com maior naturalidade na TV e no cinema. Como
era estandardizada pelas celebridades. Como era grudada no inconsciente
coletivo. Como seria posta em cada rua por que passaram as passeatas do orgulho
gay, que juntaram mais e mais pessoas ao longo dos anos que se seguiram. Como
foi erguida quando dos avanços legais em matéria de adoção e na medicina. Assim
como seria fincada em Washington, quando o primeiro presidente assumidamente
homossexual foi eleito para comandar a então nação mais importante do mundo.
Como tremularia ao sabor dos ventos nos outros países onde as eleições de
homossexuais também ocorreram. E também nos jardins das casas dos já orgulhosos
e nem um pouco temerários homossexuais de todos os países do mundo. Demorou.
Custou muito. Doeu. Mas a onda colorida se espalhou. Ou antes, se revelou, uma
vez que já era presente, apenas estava reprimida. Com o passar do tempo já não
havia mais motivo para se esconder. Como se afirmava, agora todo Bento Santiago
podia sair do armário, sem medo de represálias. Os homossexuais já eram
aceitos, o amor entre iguais era normal. O incomum era, enfim, comum.
Talvez até
demais...
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