segunda-feira, 9 de julho de 2012

Prólogo



Foi com grande alarde que o público recebeu O Segredo do Casmurro, livro contendo a monografia de conclusão do curso de letras de Augusto Cavalcante. Defendida alguns meses antes de sua publicação, foi um dos professores da banca que convenceu Augusto de que sua ideia não poderia ficar restrita ao meio acadêmico. Era perigosa, inovadora e, principalmente, propunha uma nova rota de investigação e conjectura para aquele que é considerado um dos maiores mistérios da literatura mundial. Procure em qualquer biblioteca de faculdade; as monografias, dissertações e teses que se ocupam em desvendar o enigma da suposta traição de Capitu são infindáveis, mas todas se limitam a duas respostas: em talvez metade delas, Capitu é infiel, e na outra metade, as desconfianças de Bento não condizem com a realidade. Provas são apresentadas tanto pelos defensores de uma teoria quanto de outra, mas a narrativa foi construída com tamanha maestria por Machado de Assis que qualquer resposta definitiva não consegue ser de impossível contestação. E a ideia de Augusto também era passível de toda e qualquer dúvida, e seu autor sabia disso. Ele não pretendia, de forma alguma, afirmar que o que ele dizia era a verdade, porque talvez sequer exista uma verdade. Ele apenas desejava expor um novo caminho, que lhe era tão claro, que o espantava o fato de que ninguém houvesse pensado nele antes. Augusto não afirmava que Capitu traiu nem que não o fez; a consumação da traição por parte dela não era o seu foco. O que ele realmente propunha era que, de culpada, Capitu deveria passar, se não tão somente, ao menos também, a vítima. O grande traidor da história era Bento. De igual às outras teorias, apenas o fato de Escobar ser o personagem com quem a traição ocorreu.
Apresentando várias passagens, como as que descrevem Escobar tão ou mais longamente que Capitu, de maneira tão romântica quanto; aquelas onde o contato físico com o amigo era tão íntimo quanto com a amiga; da comparação do mar entre a casa dele e do amigo já crescidos com o muro da infância entre ele e Capitu; do modo de referir-se semelhante à Capitu e Escobar, amigo e amiga; outras onde a cenas com Escobar seguiam-se, obrigatoriamente, narrativas que provassem de algum modo sua heterossexualidade; Augusto resumia Dom Casmurro como uma projeção: Bento joga sua culpa pela traição com Escobar em Capitu, como se ela houvesse cometido o que, na verdade, fora vivenciado por ele. É o próprio Bento quem afirma que usaria suas lembranças conforme lhe conviessem para construir ou reconstruir a si mesmo. Para Augusto, não só as lembranças eram usadas conforme convinham, como também estas eram recriadas, em auxílio da formação de uma grande farsa. Do alto de sua inteligência, Machado de Assis encontrara um modo sutil para contar a história de um amor entre iguais, em meio a uma sociedade conservadora.
Em resumo, era essa a interpretação do romance em que consistia o livro O segredo do Casmurro, e era essa a tese que tanto alvoroço causou. Os literatos conservadores a viram como uma afronta a obra do Bruxo do Cosme Velho; alguns psicanalistas a louvavam como uma sensata análise da aplicação dos chamados mecanismos de defesa, enquanto outros diziam que um desconhecedor da teoria de Freud não deveria se aventurar em falar em seus termos; professores de literatura e português dividiam-se na opinião, com uma parte taxando Augusto como louco e outra o congratulando por sua ideia, divisão também presente no grande público. Os mais felizes, no entanto, com a possibilidade de um amor entre dois homens ser o pilar de um dos mais aclamados romances de todos os tempos eram os homossexuais. Sua vitória com o reconhecimento da união civil estável entre pessoas do mesmo sexo era muito recente e ainda muito discutida, e toda e qualquer ajuda para sua causa era bem vinda.

Quando perguntado se a bandeira da homossexualidade era a que defendia com sua teoria, Augusto afirmava que não, mas que não via problemas na sua utilização por parte da comunidade gay. O fato é que, mesmo que assim não desejasse, a bandeira com as cores do arco-íris já havia sido fincada em suas mãos. Assim como vinha se fazendo presente a cada momento com maior naturalidade na TV e no cinema. Como era estandardizada pelas celebridades. Como era grudada no inconsciente coletivo. Como seria posta em cada rua por que passaram as passeatas do orgulho gay, que juntaram mais e mais pessoas ao longo dos anos que se seguiram. Como foi erguida quando dos avanços legais em matéria de adoção e na medicina. Assim como seria fincada em Washington, quando o primeiro presidente assumidamente homossexual foi eleito para comandar a então nação mais importante do mundo. Como tremularia ao sabor dos ventos nos outros países onde as eleições de homossexuais também ocorreram. E também nos jardins das casas dos já orgulhosos e nem um pouco temerários homossexuais de todos os países do mundo. Demorou. Custou muito. Doeu. Mas a onda colorida se espalhou. Ou antes, se revelou, uma vez que já era presente, apenas estava reprimida. Com o passar do tempo já não havia mais motivo para se esconder. Como se afirmava, agora todo Bento Santiago podia sair do armário, sem medo de represálias. Os homossexuais já eram aceitos, o amor entre iguais era normal. O incomum era, enfim, comum.
Talvez até demais...

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