segunda-feira, 9 de julho de 2012

Enredo


Em um futuro incerto, os homossexuais serão a maioria da humanidade. Com essa nova conformação social, uma nova moral surgirá, e os heterossexuais passarão a ser mal vistos, numa clara inversão dos papéis a que estamos acostumados. A nova razão conta a história de Lúcia, uma garota “normal” envolta em inquietações, que está insatisfeita com seu namoro com Letícia e com a ausência de um pai, mesmo que uma de suas mães, a religiosa Erínia, faça de tudo para “parecer um homem”. Ao se aproximar de seu patrão, o psicanalista Marcelo, ela descobrirá as ideias de Freud, espantando-se com as conjecturas feitas por Marcelo sobre a atual realidade social e com as revelações sobre seu inconsciente e sobre sua própria identidade que a psicanálise fará: a linguagem oculta e perigosa de seus sonhos, sua relação conflituosa com Erínia e muito próxima a Amanda (a outra mãe), seus desejos secretos... E quando o sobrinho de Marcelo, o inconsequente Eros, vem morar com o tio, expulso da casa do pai, os desejos latentes se tornam manifestos, e mais fortes e incontroláveis do que nunca. Mas realizar esses desejos será extremamente difícil para os dois, seja pela pressão da sociedade adepta de uma nova razão, pela repulsa das mães de Lúcia, que não aceitam uma filha heterossexual, pelo ciúme de Marcelo, que se apaixona pela garota, pela perseguição da polícia, quando uma lei contra os heterossexuais é aprovada, pela nova vida que serão obrigados a levar como fugitivos, ou ainda por fatos desconhecidos do casal, que mostrarão que a relação de Lúcia e Eros é muito mais complexa do que parece.


Prólogo



Foi com grande alarde que o público recebeu O Segredo do Casmurro, livro contendo a monografia de conclusão do curso de letras de Augusto Cavalcante. Defendida alguns meses antes de sua publicação, foi um dos professores da banca que convenceu Augusto de que sua ideia não poderia ficar restrita ao meio acadêmico. Era perigosa, inovadora e, principalmente, propunha uma nova rota de investigação e conjectura para aquele que é considerado um dos maiores mistérios da literatura mundial. Procure em qualquer biblioteca de faculdade; as monografias, dissertações e teses que se ocupam em desvendar o enigma da suposta traição de Capitu são infindáveis, mas todas se limitam a duas respostas: em talvez metade delas, Capitu é infiel, e na outra metade, as desconfianças de Bento não condizem com a realidade. Provas são apresentadas tanto pelos defensores de uma teoria quanto de outra, mas a narrativa foi construída com tamanha maestria por Machado de Assis que qualquer resposta definitiva não consegue ser de impossível contestação. E a ideia de Augusto também era passível de toda e qualquer dúvida, e seu autor sabia disso. Ele não pretendia, de forma alguma, afirmar que o que ele dizia era a verdade, porque talvez sequer exista uma verdade. Ele apenas desejava expor um novo caminho, que lhe era tão claro, que o espantava o fato de que ninguém houvesse pensado nele antes. Augusto não afirmava que Capitu traiu nem que não o fez; a consumação da traição por parte dela não era o seu foco. O que ele realmente propunha era que, de culpada, Capitu deveria passar, se não tão somente, ao menos também, a vítima. O grande traidor da história era Bento. De igual às outras teorias, apenas o fato de Escobar ser o personagem com quem a traição ocorreu.
Apresentando várias passagens, como as que descrevem Escobar tão ou mais longamente que Capitu, de maneira tão romântica quanto; aquelas onde o contato físico com o amigo era tão íntimo quanto com a amiga; da comparação do mar entre a casa dele e do amigo já crescidos com o muro da infância entre ele e Capitu; do modo de referir-se semelhante à Capitu e Escobar, amigo e amiga; outras onde a cenas com Escobar seguiam-se, obrigatoriamente, narrativas que provassem de algum modo sua heterossexualidade; Augusto resumia Dom Casmurro como uma projeção: Bento joga sua culpa pela traição com Escobar em Capitu, como se ela houvesse cometido o que, na verdade, fora vivenciado por ele. É o próprio Bento quem afirma que usaria suas lembranças conforme lhe conviessem para construir ou reconstruir a si mesmo. Para Augusto, não só as lembranças eram usadas conforme convinham, como também estas eram recriadas, em auxílio da formação de uma grande farsa. Do alto de sua inteligência, Machado de Assis encontrara um modo sutil para contar a história de um amor entre iguais, em meio a uma sociedade conservadora.
Em resumo, era essa a interpretação do romance em que consistia o livro O segredo do Casmurro, e era essa a tese que tanto alvoroço causou. Os literatos conservadores a viram como uma afronta a obra do Bruxo do Cosme Velho; alguns psicanalistas a louvavam como uma sensata análise da aplicação dos chamados mecanismos de defesa, enquanto outros diziam que um desconhecedor da teoria de Freud não deveria se aventurar em falar em seus termos; professores de literatura e português dividiam-se na opinião, com uma parte taxando Augusto como louco e outra o congratulando por sua ideia, divisão também presente no grande público. Os mais felizes, no entanto, com a possibilidade de um amor entre dois homens ser o pilar de um dos mais aclamados romances de todos os tempos eram os homossexuais. Sua vitória com o reconhecimento da união civil estável entre pessoas do mesmo sexo era muito recente e ainda muito discutida, e toda e qualquer ajuda para sua causa era bem vinda.

Quando perguntado se a bandeira da homossexualidade era a que defendia com sua teoria, Augusto afirmava que não, mas que não via problemas na sua utilização por parte da comunidade gay. O fato é que, mesmo que assim não desejasse, a bandeira com as cores do arco-íris já havia sido fincada em suas mãos. Assim como vinha se fazendo presente a cada momento com maior naturalidade na TV e no cinema. Como era estandardizada pelas celebridades. Como era grudada no inconsciente coletivo. Como seria posta em cada rua por que passaram as passeatas do orgulho gay, que juntaram mais e mais pessoas ao longo dos anos que se seguiram. Como foi erguida quando dos avanços legais em matéria de adoção e na medicina. Assim como seria fincada em Washington, quando o primeiro presidente assumidamente homossexual foi eleito para comandar a então nação mais importante do mundo. Como tremularia ao sabor dos ventos nos outros países onde as eleições de homossexuais também ocorreram. E também nos jardins das casas dos já orgulhosos e nem um pouco temerários homossexuais de todos os países do mundo. Demorou. Custou muito. Doeu. Mas a onda colorida se espalhou. Ou antes, se revelou, uma vez que já era presente, apenas estava reprimida. Com o passar do tempo já não havia mais motivo para se esconder. Como se afirmava, agora todo Bento Santiago podia sair do armário, sem medo de represálias. Os homossexuais já eram aceitos, o amor entre iguais era normal. O incomum era, enfim, comum.
Talvez até demais...

Capítulo 1



Em uma tarde de domingo em que, incrivelmente, o sol se deu o trabalho de brilhar no céu da capital paranaense, encontravam-se as duas, Lúcia e Letícia, sentadas num dos bancos de madeira embaixo dos galhos de uma árvore (uma aroeira, segundo a plaquinha fincada na terra) do Jardim Botânico. Estavam ali há quase meia hora, sem trocar uma palavra. Nada incomum. No começo do namoro as coisas até eram diferentes, mas de uns tempos pra cá Lúcia passou a agir como se estivesse distante, pensando em algo que, mesmo com a insistência de Letícia, a garota nunca dizia o que era. Talvez fosse um erro persistir com aquilo. Letícia só precisava fazer seu coração compreender o que seu cérebro já sabia. Lúcia só precisava entender o que a atual situação lhe alertava. Tarefa árdua para as duas garotas.

 - Pensando em quê?

 - Nada em especial.

Letícia, que até então olhava para Lúcia, virou o rosto para baixo, assim como a namorada, e voltou ao silêncio inquietante. Minutos mais tarde, falou:

 - Vamos embora?

 - Não. Tá cedo ainda.

 - E nós vamos ficar aqui sentadas?

 - Pode ser...

 - E você vai conseguir ficar aqui do meu lado, aceitando a minha presença? Se você quiser, eu posso ir embora e te deixar sozinha, pra você poder “pensar em nada em especial” sem que eu te atrapalhe.

 - Se você quiser...

Letícia riu diante da indecisão de Lúcia em encerrar a frase com um ficar ou um ir. Decidiu por permanecer ali. Nesse instante, duas sombras sobrevoaram as garotas, e então um casal de pombos pousou em frente às duas.

 - Está vendo isso?

Letícia foi pega de surpresa. Ia perguntar “o quê”, quando percebeu o casal de pombos a que Lúcia se referia.

 - Um casal de pombos. - disse Letícia, indiferente.

 - Exatamente. Um casal de pombos.

 - E?

 - Não sei até onde vão seus conhecimentos sobre aves, mas aquele dali – e apontou para um dos pombos – que é um pouco maior e mais gordo, que tem aquele pescoço “cheio”, é um macho. A outra – e apontou para o pombo menor – é uma fêmea.

 - Legal.

Lúcia então encarou Letícia, que demonstrava desinteresse pelo assunto e parecia não saber aonde a namorada queria ir com aquela conversa.

 - Qualquer outro animal é assim. Um macho e uma fêmea. Agora olha pra gente, olha pra todo mundo aqui, pra todas as pessoas no mundo... Por que com a gente é diferente?

 - Porque sim.

Lúcia não pareceu contente com a parca explicação de Letícia, que prontamente prosseguiu.

 - Você percebeu a comparação que você quis fazer? Seres humanos e animais.

 - E nós não somos animais?

 - Irracionais não.

Foi a vez de Lúcia rir.

 - Eu não consigo perceber onde está a diferença...

 - Porque você deve ser burra.

E Letícia então moveu a mão direita, com o polegar e o indicador levantados, formando uma espécie de U, enquanto sorria. Mas Lúcia não riu da brincadeira.

 - Claro. Sou eu que faço tudo o que os outros animais fazem e não me considero um deles.

 - Lúcia, eu poderia te dar tantos exemplos de animais que têm relações homossexuais, que você ficaria surpresa. Os próprios pombos, inclusive. Procura se informar antes de afirmar qualquer coisa. Mas eu não tô entendendo aonde você quer chegar com isso. Por acaso você...

Não disse mais nada. Ficaram mais uma vez em silêncio, e então Lúcia sentiu necessidade de explicar o motivo do que dizia:

 - Seu pai, você conhece? Porque você sabe, né? Você tem um pai.

 - Então é isso... E você, por acaso conhece o seu?

 - É exatamente esse o problema! Eu não sei quem é meu pai, mas eu sei que tenho um! Pra nascer um ser humano, assim como qualquer outro animal, é preciso um pai e uma mãe, um casal... Você não se dá conta disso? Que possui uma família que não conhece?

 - Lúcia, eu conheço muito bem a minha família.

 - Tô falando da de verdade.

 - Eu também. Conheço muito bem minhas duas mães. Pra mim é normal não ter um pai, e pronto.

 - Mas e você nunca sentiu falta de uma presença masculina em casa? A presença de um pai de verdade?

 - Não... Desculpa se eu não me preocupo tanto com coisas desse tipo, como você.

 - Não se preocupa porque é alienada, assim como todo mundo.

Letícia olhou bem para o rosto de Lúcia antes de dizer:

 - Se só você vê problema em tudo, é porque o problema está – e apontou o indicador para a namorada - em você.

Levantou-se e seguiu em direção à saída, deixando Lúcia ainda sentada. Ao caminhar, acabou assustando os pombos, que alçaram voo.




Estava sentada em frente ao computador. O telefone, também em cima da mesa, já não tocava havia quase duas horas. De repente, a porta a seu lado se abriu.

 - Isso é um absurdo. O senhor é um depravado!

Era uma das pacientes de Marcelo Alencar, psicanalista para o qual Lúcia trabalhava como secretária. A mulher a gritar havia começado a fazer análise nem bem há uma semana, e já estava a abandonando. Marcelo vinha atrás dela, tentando argumentar.

 - Mas é verdade! Seu sonho constante com um homem lhe oferecendo sorvete é uma clara indicação de seu desejo...

 - Cala a boca! – ela gritou, se voltando para lhe dar com a bolsa nas costas, antes que ele pudesse terminar de dizer novamente o que já lhe havia dito quando ela ainda estava no divã.

A mulher então deixou o consultório. Massageando as costas, Marcelo voltou-se para Lúcia, que tinha assistido, assustada, à cena.

 - Mas algum paciente para hoje?

 - Só a dona Fernanda, às cinco.

Ele então respirou fundo, olhando para a porta, e levou as duas mãos à cabeça.

 - Eu não sei por que eles vêm aqui, se não querem ouvir o que eu tenho para dizer. Às vezes eu penso que seria melhor dizer só o que as pessoas querem ouvir... – e, voltando a massagear as costas – Ou procurar um massagista.

Ela sorriu, ele também. Trabalhava para ele há quase dois meses, e no pouco tempo de convivência pôde perceber que Marcelo era uma boa pessoa, apesar de um tanto estranho. Segundo ele, todos os psicanalistas são um pouco loucos, se não simplesmente não seriam psicanalistas. Tudo levava a crer que era verdade.

 - Ainda são só três horas. Hora do café. Vai sair já? – ele perguntou.

 - Vou.

 - Posso ir comer com você?

 - Claro.

Ela pegou sua bolsa, enquanto ele voltava para o consultório. Minutos depois, estavam no café no térreo do prédio.

 - Essa história de construir o maior prédio do mundo aqui é tudo recalque. Freud explica! Eles tão querendo compensar outra coisa que é pequena!



Com a xícara na mão, ela ria.

 - É sério!

 - Ah, sei lá. Não é meio perseguição dizer que tudo está relacionado a sexo? Acho que o Freud era um bom de um maníaco sexual.

Marcelo se engasgou, devido ao riso, com o sanduíche que comia. Quando conseguiu se reestabelecer, disse que talvez tivesse que concordar com ela. Era a primeira vez em que eles tinham uma conversa mais longa que um bom dia, tudo bem ou até mais. Ficaram então em silêncio. Vez ou outra, pegavam-se olhando um para o outro, ao que rapidamente desviavam o olhar. Foi ele quem quebrou o silêncio.

 - Nunca teve curiosidade em fazer uma sessão?

 - De análise? Não. Não sei. Nunca tinha pensado.

 - Nunca tinha pensado ou tem uma opinião desfavorável sobre o assunto?

 - Um pouco dos dois. – era uma afirmação, mas soou como pergunta.

 - Entendo... Mas também entendo que tirar conclusões precipitadas sempre abre a possibilidade de incorrermos num grandiosíssimo erro de interpretação. E se eu te der uma sessão de presente? Pra apagar tua imagem ruim da matéria e da minha profissão?

 - Não disse que tinha uma imagem ruim.

 - Nem o contrário.

Ele sorriu, com os olhos brilhando.

 - Tudo bem. Se não precisa pagar...

 - Eu desconto do teu salário depois. – piscou. – Mentira. Terminou já? – e indicou a mesa com a cabeça.

Eles voltaram para o trabalho. Mais tarde, quando ela estava indo embora, ele se despediu dela com um beijo no rosto. Até aquele momento o maior contato físico que tiveram foram alguns apertos de mão. Aquela noite, ela pensou nele antes de dormir. Ao longo da semana, a amizade entre os dois se fortaleceu.




 - Oi. – atendeu à namorada ao celular.

 - Oi amor, tudo bem?

 - Tudo.

 - Demorou a atender.

 - Acabei de sair do banho.

 - Ah... Quer aproveitar a noite de sábado para sair?

 - Tô querendo ficar em casa.

 - Então eu vou aí, jantar. Vemos um filme depois...

 - Tá.

 - Beijo, Lu.

 - Outro.

Tinham passado a semana toda só trocando mensagens pelo celular, desde que discutiram no domingo. Ultimamente, a companhia de Letícia estava se tornando pouco indispensável, mesmo com os esforços de Lúcia em não deixar o sentimento pela namorada passar de paixão para alguma outra coisa. Mas e em algum momento realmente esteve apaixonada?

Letícia era uma garota loira, alta, 22 anos, corpo escultural, daqueles de deixar qualquer outra mulher morrendo de inveja de Lúcia. Mas ela também não deixava em nada a desejar; três anos mais nova, era tão bonita quanto Letícia, e contrastava com a garota por possuir um longo cabelo preto. Eram as garotas da capa de revista, dizia Amanda, uma das mães de Lúcia. Foi Erínia, a outra mãe, quem lhe apresentou a namorada. Letícia havia entrado como estagiária no banco em que Erínia trabalha, e esta logo percebeu que aquela seria, sem dúvida alguma, a mulher que conquistaria sua filha. Lúcia não negava que ficou encantada por Letícia desde o primeiro momento em que a viu, em uma festa de uma amiga das mães. As duas começaram a conversar e logo ficaram amigas. A amizade evoluiu para um namoro, por iniciativa de Letícia, e aceitação um tanto quanto passiva de Lúcia. Encanto. Era isso que nutria por Letícia. Um encanto por uma amiga. Não amor. Amor, aquele de verdade, capaz de fazer a pessoa perder a cabeça, de suportar outra pessoa o tempo todo e saber conviver com seus defeitos, como o amor que via existir entre suas mães, Lúcia nunca havia sentido.

 - Quem sabe com o tempo.

Ela sabia que talvez não estivesse agindo de maneira correta com Letícia, mas até alguns meses atrás tudo estava indo certo. Namoravam havia quase dois anos, e Lúcia tinha a certeza de que durante esse tempo os momentos felizes superavam em muito os de brigas e tristezas. Então, qual seria o motivo de seu descontentamento? Para alguém que observasse a situação de fora, como era o caso de Amanda e Erínia, o descontentamento atual de Lúcia talvez não passasse de birra de garota mimada. Mas não era. Ou assim pelo menos ela pensava.

E esse não era o único problema que ocupava sua cabeça. Desde criança, mas principalmente agora, ela se perguntava pelo pai. Sua família era composta unicamente por mulheres, e mesmo que Erínia fizesse às vezes de homem da casa, não representava aquela presença masculina que Lúcia tanto sentia falta. Na natureza a sua volta, nos livros velhos que lia, nos filmes antigos que assistia, e nos raríssimos casais ainda heterossexuais que avistara vez ou outra, a imagem de família que lhe surgia era aquela composta por pai, mãe e filhos. Não é que não gostasse de sua família. Só que achava que a situação ali não era normal.

Em meio a dúvidas, foi avisar Amanda que teriam companhia para o jantar.




Depois do jantar, Letícia e Lúcia conversavam no sofá, em frente à TV ligada na sala.

 - Então, você pensou sobre nós, desde aquele dia?

 - Às vezes. – disse Lúcia.

 - Eu pensei bastante.

 - E chegou a alguma conclusão?

 - A de que, às vezes, eu sou muito grossa.

 - Eu também sou. E fui... especialmente naquele dia.

 - Acho que concordamos nesse ponto...

 - Sim.

Letícia sorriu. Pareceu hesitar antes de prosseguir.

 - Grosserias a parte, eu também venho notando outra coisa. Que você mudou muito. Não parece mais a Lúcia de antes. Mas, sabe, eu te entendo. Quando nós começamos a namorar, você tinha 17 anos. Tudo era diferente pra você. Hoje em dia você começou a encarar tudo com mais responsabilidade, e eu acho que é isso que tá te martelando na cabeça.

 - Pode ser.

 - Eu só quero pedir pra você que fale comigo, quando achar que alguma coisa não tá legal.

 - Foi exatamente isso que eu fiz aquele dia.

 - E eu fui sincera com você.

 - E eu não consigo acreditar que você possa ser tão apática a respeito de tudo.

 - Talvez não seja apatia, Lúcia. Já pensou que eu simplesmente não me importo tanto com algumas coisas as quais você dá uma importância tão grande ultimamente?

 - Mas a graça de uma relação não está justamente no fato de que as duas pessoas podem discutir os assuntos que interessam tanto a uma quanto a outra, ou  a uma ou  a outra?

 - Tem razão...

 - Em vários assuntos nós possuímos opiniões diferentes, e eu queria discutir eles com você. Eu achei que podia discutir eles com você...

 - E pode. Só que sem quatro pedras na mão... Eu... Confesso que tô muito chata ultimamente. Nunca achei que ia dizer isso, mas enfim, “devem ser os problemas do trabalho”. Mas você concorda comigo que você também mudou?

 - Sim.

 - De uns tempos pra cá a gente briga muito, por qualquer coisa.

 - Você não disse que eu cresci? Então, hoje em dia eu penso muito diferente do que pensava antes. Talvez seja por isso.

 - E teus sentimentos também mudaram?

As duas ficaram em silêncio por alguns instantes.

 - Não sei, Letícia. Eu nunca os entendi direito.

 - Eu não quero te perder, por nada.

Não soou como uma súplica desesperada. Foi mais como um pedido de abraço por um amigo que não vemos há muito tempo. Lúcia não sabia o que dizer.

 - E eu também acho que, com o tempo, as coisas vão acabar melhorando entre a gente. Você vai ver.

Na indecisão de falar que sim ou que não, Lúcia acabou demorando na resposta, o que fez Letícia pensar que a garota havia concordado com ela. As mães vieram da cozinha, e sentaram-se no outro sofá, ao lado das garotas. Na TV, o apresentador do telejornal anunciava:

 - Em consonância aos países da Europa, foi assinada hoje pelo presidente Lalo a lei que proíbe o casamento heterossexual. A partir de agora, a união civil entre pessoas de sexo diferente não será mais considerada legal. Todos os direitos antes reconhecidos para esses tipos de casais estão anulados. A maioria dos deputados, senadores, ministros e outros políticos, tanto da base aliada quanto da oposição, comemorou a aprovação da lei. Nas ruas, a manifestação positiva da população também foi marcante.

 - Até que enfim. Brasil finalmente fazendo sua parte como grande país desenvolvido do mundo. – disse Erínia.

 - Isso é prova de que ele é um grande país desenvolvido? – perguntou Lúcia, que não sabia se ria ou se ficava chocada.

 - Sim. Por acaso um país tão importante como o nosso pode reconhecer esse tipo de absurdo? Não é certo ter héteros andando por aí, desfrutando dos mesmos direitos que nós, como se fossem pessoas normais.

Boquiaberta, Lúcia virou o rosto para Amanda, que se manifestava, serena:

 - Eu acho bobagem. Tanta coisa mais importante pra se preocupar. Gente passando fome, morando em local inapropriado, a violência nas ruas, corrupção lá entre eles... Bobeira se preocupar com quem as pessoas se relacionam ou deixam de se relacionar. Aliás, proibir casamento não vai proibir a relação.

 - Esse é o próximo passo.

 - Ah, como se alguém tivesse autoridade para proibir com quem as pessoas se relacionam. – argumentou Lúcia.

 - Se não há esse poder deveria existir alguma forma de torna-lo existente.

 - Todo mundo tem direito de existir e de ter a vida que quer.

 - Mas e a moral? Que exemplo esse tipo de gente tá dando? Você acha certo que nós sejamos obrigados a conviver com essas aberrações? Os políticos têm mais é que fazer alguma coisa para acabar com eles. Heterossexuais... Por acaso Deus acha isso certo?

 - Você tá brincando né? – perguntou Lúcia.

 - Não. Eu acredito mesmo que quanto mais nós nos mobilizarmos contra uma minoria de heterossexuais que existe por aí vamos deixar melhor o mundo.

 - Melhor ou igual? Então porque alguém pensa ou age diferente de você ela deve ser condenada?

 - Nesse caso, sim. Em certos assuntos o certo e o errado são muito bem delimitados. E esse é um deles. O certo é homem com homem e mulher com mulher, do jeito que Deus quer. O filho que ele enviou para a Terra era gay, e é esse filho, Jesus, o nosso maior exemplo.

 - Então o juízo de valor é pela vontade de Deus?

 - Sempre.

Uma cena que Lúcia considerava já esquecida, passada entre ela e Erínia, surgiu-lhe a mente. A garota tinha então de quatro para cinco anos e, na curiosidade típica da infância, estava ansiosa por saber mais sobre a história contada pelo padre na missa a que acabara de voltar com as mães. Ela e Erínia estavam sentadas naquele mesmo sofá, mas naquela época com um estofamento diferente, e Erínia lhe contou melhor o ensinamento tirado da vida de Adão e Eva.

 - Eles traíram a confiança de Deus – dizia Erínia – quando comeram do fruto proibido. E foram condenados a ficarem de fora do paraíso até que se reconciliassem com o seu criador. Isso é uma metáfora, minha querida.

 - Metáfora? – a criança disse com dificuldade.

 - É - disse Erínia, rindo do esforço da filha -, uma história que possui um significado real diferente do explícito, do que parece ser. E a história de Adão e Eva é a metáfora mais importante de todas. Ela significa, na realidade, que Deus ficou furioso por ver as suas criaturas, Adão e Eva, namorando.

 - Um homem e uma mulher? – Lúcia falou assustada.

 - Um homem e uma mulher. Horrível, não? O fruto proibido é a representação desse relacionamento além da amizade entre homem e mulher. Deus expulsou Adão e Eva do paraíso, e com isso condenou toda a humanidade, todas as pessoas a viverem em sofrimento, até o momento em que elas se modificassem e voltassem a seguir o caminho da retidão divina.

 - E as pessoas conseguiram isso?

 - Sim! Quando os homens passaram a namorar só com homens e as mulheres só com mulheres. As pessoas voltaram a seguir os preceitos divinos, a ideia original de Deus, que era tornar o ser humano uma criatura acima dos animais, capaz de dominar a todos esses. Os animaizinhos não se juntam macho e fêmea? Então, o ser humano, como superior, deve agir de maneira diferente. Foi só quando a humanidade descobriu que a homossexualidade era o caminho desejado a ser seguido por Deus que nós nos reconciliamos com ele.

 - E nós voltamos a viver no paraíso?

Erínia sorriu para a filha, passou a mão pelos seus cabelos, e lhe disse:

 - O que você acha?



A lembrança parou por ali. A mãe que estava agora a sua frente parecia uma religiosa moralista ainda mais ferrenha que antigamente. Talvez, pensou Lúcia, quanto mais velha a pessoa fica, mais moralista ela se torna.

 - Então as pessoas não possuem liberdade para serem como quiserem?

 - Liberdade é diferente de libertinagem. Quem vive no pecado não pode ser livre.

Erínia e Lúcia se encaravam. De repente, Lúcia se voltou para Letícia:

 - Você ainda quer sair?

 - Mas a gente não ia ver filme aqui?

 - Mudei de ideia.

 - Vai sair agora filha? Tá tarde.

Amanda, que não gostava das brigas entre a mulher e a filha, sabia que Lúcia possuía um pensamento mais liberal, mais em consonância com ela do que com Erínia. Também sabia que a filha preferiria ficar longe de Erínia aquela noite.

 - É melhor. Respirar ar mais saudável, porque o aqui de dentro tá bem sufocante.

Saíram e foram para uma boate ali perto. Lúcia, que geralmente não bebia, aquela noite resolveu encher a cara. Esperava que o álcool e a música alta a fizessem esquecer o mundo.




Depois do almoço de domingo, Erínia foi dormir no quarto, enquanto Lúcia e Amanda se encontravam no sofá da sala. No humorístico da TV, um grupo de rapazes, liderados por um velho, corriam com pedaços de madeira atrás de um cavaleiro empunhando uma espada, tentando acertá-lo. Amanda desligou o televisor, e começou a conversar com a filha.

 - Percebi que o clima entre vocês não está muito legal. Problemas com a Letícia?

 - Nada sério.

A mãe assentiu. Depois de um instante de silêncio, falou:

 - E a discussão de ontem com a tua mãe...

 - Vai querer realmente falar sobre isso?

 - Só acho que você deveria tentar entender, ou pelo menos aceitar, o jeito dela.

 - E você aceita?

 - Mesmo que não aceitasse. Eu amo ela.

 - Não é porque ama que vai fechar os olhos e calar a boca pro bando de bobeira que ela pensa, fala e faz.

 - Não foi você mesma quem disse que a pessoa não deve ser condenada por pensar diferente da gente?

Lúcia não conseguiu falar nada. A menção de uma frase sua contra si mesma a fez perder as palavras.

 - Quer conversar sobre isso?

 - Melhor não. Deixa pra lá. Agora só quero deitar um pouco no teu colo...

E Lúcia deitou-se no sofá, com a cabeça apoiada no colo da mãe. Ela passava a mão pelos cabelos da filha, cantarolando uma canção qualquer.

 - Lembro-me de você pequenininha, no dia do teu aniversário de cinco anos, quando a gente te deu aquela boneca de porcelana caríssima que você tanto queria. Você a tirou da caixa, pra brincar um pouco; eu a Ju deixamos você sozinha, e não tinha passado nem dois minutos você apareceu, gritando que tinha quebrado a boneca. Você morreu de medo que a Erínia brigasse com você e aí correu se abrigar no meu colo.

 - E se eu não tivesse me protegido com você ela teria brigado mesmo.

- Claro que não. Ela foi lá juntar os pedaços da boneca, com medo de que você se machucasse. E queria comprar outra, na mesma hora. Eu que não deixei.

 - Não sabia disso... E você não a deixou comprar outra por quê?

 - Porque fiquei com medo que você quebrasse também, e a gente não tivesse por perto e você se machucasse com os cacos. Mas no dia seguinte a gente comprou...

 - A bicicleta.

 - ...a bicicleta. E lembra que foi a Erínia quem te ensinou a andar?

 - Lembro.

 - Sabe que eu nunca andei de bicicleta? Nunca aprendi. Nunca tive quem me ensinasse.

 - Sabe qual é a melhor parte de andar de bicicleta?

 - Qual?

 - Encarar uma descida gigante. Melhor ainda se for depois de uma subida interminável. Sentir o vento na cara, quase rasgando o teu rosto. Fazendo teu cabelo se armar. Depois do esforço com a subida, é a sensação de um voo. É ótimo... Sabia também que a gente nunca esquece como se anda de bicicleta?

 - Sabia. Pena que não possa acontecer o contrário. Já pensou se a gente pudesse esquecer o que nunca soube?

 - Mas isso não tem lógica.

 - E precisa?

Riram as duas. E continuaram por um longo tempo naquela conversa boba, de mãe e filha.